Temporada de caça ao dicionário, por Luiz Costa Pereira Júnior, revista Língua Portuguesa
Ministério Público Federal processa o Houaiss por preconceito contra os ciganos e abre a discussão sobre até que ponto um dicionário deveria ser politicamente correto
O cigano é um povo intrigante. Habita o imaginário como o tipo desgarrado e sensual, fora da lógica gregária do Ocidente e à margem de compromissos que não os de seu círculo. Segundo o Houaiss, seus hábitos itinerantes remontam a antepassados que foram do norte da Índia para o oeste, primeiro até a Pérsia, ao atual Egito, de onde se espalharam pelo mundo.
Cultura desconhecida e malfalada, foi muito caçada - fazia, por exemplo, companhia a socialistas, gays e judeus nos campos de concentração nazistas. No Brasil, forma minoria populosa, de 800 mil pessoas. É cena corriqueira a de ciganos caracterizados, lendo a sorte ou vivendo de expedientes nas calçadas e orlas do país. Talvez por isso, sua imagem continua tão errante quanto suspeita - e é improvável que alguém seja indiferente à reputação ambígua dos ciganos, de um lado digna e aventureira, de outro rebelde e matreira.
Dicionários registram muitos sinônimos para "cigano". Dois deles estão sendo, literalmente, caçados pela Justiça.
Inquérito
O Ministério Público Federal em Uberlândia (MG) ajuizou ação contra o Instituto Antônio Houaiss e a editora Objetiva, para que os dicionários da linha Houaiss sejam tirados de circulação até que corrijam suas edições. O verbete "cigano" conteria preconceito e a editora teria se recusado a suprimi-lo.
Duas definições foram criticadas: "aquele que trapaceia; velhaco, burlador" e "que faz barganha, que é apegado ao dinheiro; agiota, sovina". Além da retirada da obra das prateleiras e da correção, o MPF exigiu indenização, por dano moral coletivo, de R$ 200 mil.
- Apesar de o dicionário mencionar que as definições são pejorativas, o mero fato de registrá-las contribui para que continue o preconceito. Essas expressões são de uns 200 anos e só continuam porque estão no dicionário - explica Cleber Eustáquio Neves, de 50 anos, o procurador da República, em Uberlândia (MG), responsável pela ação.
Neves atribui a dicionários o poder de influenciar o uso lexical.
- As pessoas aprendem o sentido das palavras no dicionário. A definição de "trapaceiro" ou "enganador" não é mais corrente, pois a pessoa pode ser presa se disser isso dos ciganos. Uma acepção dessas não retrata mais a realidade. Todo cigano é enganador? Qualquer brasileiro pode ser - alega o procurador.
Respostas
A investigação começou em 2009, quando o MPF acolheu representação de um uberlandense de origem cigana, apontando a discriminação contra seu povo.
- O MPF quer que essas expressões desapareçam e o fato de um dicionário registrá-las é responsável por colocar tais ideias em circulação - diz Neves.
Incidente parecido já envolvera o verbete em 2009, também em Uberlândia. Ação ordinária ajuizada por Cleber Fernandes Machado pedia indenização por danos morais contra dicionários da editora Globo. Mas a juíza Raquel Agreli Melo julgou improcedente o pedido.
Para Mauro de Sales Villar, diretor do Instituto Houaiss, casos do gênero resultam de um mal-entendido sobre o papel das obras lexicais de referência.
- Dicionários não criam termos na língua; só refletem, como espelhos, as ocorrências com que se deparam, não os usando com intenção de atacar ou menosprezar pessoas ou grupos - afirma ele.
Num primeiro movimento do inquérito civil, o MPF enviou representação para que as editoras prestassem esclarecimento. Em seguida, recomendou a cada uma que retirasse a sinonímia condenável. Segundo Neves, todas (como Globo e Melhoramentos) acataram o pedido, com exceção da Objetiva, "alegando que a decisão seria da alçada do Instituto Houaiss". Villar conta que em 2010 o instituto enviou carta ao MPF, explicando que a edição problemática não seria reimpressa e as edições digitais e demais versões alterariam o verbete conforme o recomendado. A 2ª edição do Houaiss, já concluída, ainda não foi publicada.
Neves diz que não recebeu a carta. Por isso, considera a ação civil uma chance de acordo. Se uma carta com esse teor chegar às suas mãos, estuda arquivar o caso e até dispensar a indenização, pois o objetivo do processo teria sido atingido.
Especialistas dizem, no entanto, que o problema não se resolve com recuos do gênero. Pois está em jogo não um mero verbete, mas a razão de ser dos grandes dicionários.
- Com o tempo, as palavras ganham conotações, nem sempre positivas. Quanto mais acepções mostrar, mais completo um dicionário será. É inconcebível retirar acepções - diz a lexicóloga Elis de Almeida Cardoso, professora da USP.
Polêmica
Para Francisco da Silva Borba, do Dicionário Unesp do Português Contemporâneo, a ação civil promove um patrulhamento desmedido.
- É absurdo esse policiamento do uso linguístico. O Houaiss, sendo um dicionário filológico, não tem abonações, mas é um erro tratar o sentido condenado como se ele não existisse - diz o professor da Unesp de Araraquara (SP).
Borba prevê até julho o lançamento de seu Grande Dicionário do Português Escrito no Brasil, pela editora Unesp. "Cigano" estará nele, com as acepções de "pessoa de vida incerta e errante", "ambulante negociante de cavalos" e um uso indicado como pejorativo, mas abonado por Dom Casmurro (com "olhos de cigana oblíqua e dissimulada", Machado de Assis caracterizou Capitu).
A professora Elis considera problemática a certeza de que sentidos pejorativos de "cigano" sejam hoje inexistentes, como alega o MPF.
- Para ser tão categórico ao dizer isso, seria preciso mostrar a frequência de uso. A prova em contrário é o próprio dicionário, que registrou um uso antigo e ainda corriqueiro. Um sentido não deixa de existir só pela vontade de que não exista - diz ela.
Assim, embora o nomadismo não seja mais característica universal dos ciganos (muitos se sedentarizaram), o uso não "corrigiu" a acepção "nômade" da palavra, que os dicionários reproduzem. Assim também expressões como "remédio para dor de barriga" e "risco de vida" não correspondem a "fatos" (ninguém toma remédio para provocar dor nem corre risco de viver), mas ao uso linguístico corrente.
Borba diz que toda definição de dicionário deve ser fundada no uso. Palavras são neutras (fóricas), só o uso define se terão valor positivo (eufórico) ou negativo (disfórico), diz o lexicógrafo. "Graças a você, bati o carro", exemplifica. "Graças", de teor positivo, é usado como negativo. O sentido condenável depende, assim, de conjugação de fatores mais decisiva que o mero verbete, como contexto, alcance, intenção, posição social do falante e, como diria Contardo Calligaris (Folha de S. Paulo, 30/6/2005, E12), o lugar que a pessoa, ao falar, reserva a quem o escuta. A incorreção não seria bem o escárnio, mas fazer quem escuta não ter opção a não ser aderir ou calar-se. O abuso verbal é imposto por quem faz pouco ou despreza o ouvinte - imagina-se dizer o que quiser, indiferente à situação. Foi a insensibilidade ao contexto que desempregou o pseudo-humorista Rafinha Bastos na TV Bandeirantes, embora a emissora só tenha se incomodado (com ele ter dito "eu como ela e o bebê" sobre uma grávida) quando o chiste atingiu personalidades com peso comercial.
Brasileiro
Palavras com sinônimos ofensivos a etnias e povos soçobram na lexicografia. Nem "brasileiro" escapa. A nona acepção no Houaiss recupera Portugal: brasileiro é o "novo-rico de mau gosto, sem educação ou cultura". Podemos não nos reconhecer na acepção, mas há outras oito que permitem plena identificação.
Nem sempre o rastro de uma palavra é transparente. Muitas derivadas quase só apresentam sentidos pejorativos. "Denegrir" (infamar) deriva de "negro"; "ciganear" (falsear), de "cigano" e "judiar" (maltratar), de "judeu". O contexto discursivo de intolerância, no entanto, não é a premissa de base para o uso dessas palavras e é incerto que, ao usá-las, o falante faça necessariamente o vínculo com etnias e segregações.
- Com termos assim, a pessoa só recupera o sentido primeiro se refizer o trajeto da palavra de caso pensado. Se alguém fala "Ele está muito judiado" não é categórico que esteja pensando em judeus - diz Elis Cardoso.
Média de uso
Quem usa "capadócio" (trapaceiro), "vândalo" (arruaceiro), "boêmio" (beberrão) e "beócio" (ignorante) não necessariamente reproduz agressões a povos da Capadócia, da Alemanha, da Boêmia e da Beócia. - A fala é espontânea, comparada à escrita. Se há entrelinha, não é o analista que vai julgar. Quando usa um verbete, é como se o dicionarista dissesse: "Não sou eu que estou dizendo, apenas cito" - diz Borba.
Para ele, registrar os sentidos lexicais correntes ganhou complexidade no país. A escrita, lembra, é mais "fixa" do que a fala. Como o Brasil vive histórica invasão oral da escrita, o uso escrito tem cada vez mais proximidade com o que se vê no registro falado. "Pra" (para) e "cê" (você), por exemplo, são formas da oralidade cada vez mais aceitas em textos brasileiros.
- O dicionarista do passado, sem formação acadêmica, sempre se baseou na autoridade da língua escrita. Hoje em dia não é mais essa autoridade que dita as acepções, mas a média de uso - diz Borba.
Saber o que circunscreve uma "média de uso", no entanto, é um dos nós do caso Houaiss. É nessa brecha de verificação que trabalha o procurador Cleber Neves.
- Dicionários não são neutros. Cada um retrata a visão de um autor, por isso a obra leva seu nome. O que lemos neles não necessariamente é acepção geral, mas parcial - diz.
Desconfiança
É antiga a desconfiança de que os dicionários propagariam uma visão isolada como se comum a toda gente. O sociólogo Pierre Bourdieu (1930-2002), em Questões de Sociologia (Lisboa, Fim de Século, 2004: 30), chegou a escrever que "o dicionário está cheio de uma certa mitologia política". Ocorre que a mitologia sobre ciganos parece ter sido emulada pelos próprios. A ênfase das acepções de "cigano" no "Grande" Houaiss não é pejorativa - de oito, só duas se enquadram, como exceção. O problema estaria em outra obra: o Dicionário Houaiss de Sinônimos e Antônimos tem cinco acepções, negativas ("desregrado"; "espertalhão"; "trapaceiro"; "boêmio" e, exceção duvidosa, "nômade").
- Claro que há seleção. Todo dicionário poderia escrever um verbete de outro modo. A redação é autoral, mas as informações ali não são resultado da opinião de um autor, mas da pesquisa em diversos corpora - pondera Elis Cardoso.
Eliminação
Neves discorda.
- O Houaiss propagou um juízo antecipado, que não mais se justifica. Ninguém duvida da veracidade do que ali encontra. Sequer questiona. O sentido pejorativo será internalizado, levando à conduta preconcebida em relação a um povo que deveria ser respeitado - diz.
Villar defende as acepções, embora aceite as mudanças previstas.
- Os dicionários de sinônimos e antônimos obviamente não contêm definições. Registram as acepções que captam nos textos literários, basicamente. Os verbetes citados trazem os tais sentidos despectivos, mas sempre com a marca de pej. (pejorativo) - escreve Villar.
Para ele, palavras não existem porque as pessoas leem dicionários.
- Ninguém supõe eliminar dos dicionários palavras como "guerra", "tortura", "violência", "pedofilia" com fim de conter ou impedir que tais tormentos continuem a existir. Fazê-lo seria varrer para debaixo do tapete o que nos envergonha. Que fazer nos dicionários em tais casos, então? Registrar a palavra ou a acepção e dizer claramente, quando é o caso, que ela é pejorativa e preconceituosa. É como fazem os dicionários modernos em todo o mundo - diz Villar.
Borba considera um precedente perigoso o aberto pelo caso.
- Essa história do politicamente correto está se espalhando tanto que quem mexe com a língua escrita se sente atrapalhado. Não sabe mais se, ao escrever, será condenado ou não - afirma.
Política cultural
Na lógica de linguistas como Borba, o precedente pode estimular caprichos futuros, e não é difícil imaginar sanções judiciais contra o sentido negativo de outros termos por motivos os mais diversos.
A correção política depende do tipo de conversação que uma sociedade acredita caber em seu meio. O politicamente correto é filhote da vida urbana impessoal. Nela as relações tendem a ser pautadas não tanto pelos contatos familiares e estreitos, em que a rede de recriminações é tão densa quanto mediada pelos afetos das relações diretas. A vida urbana tende a ser, digamos, "mais jurídica que ética". É marcada por graus de separação, em que o sujeito ao lado é um desconhecido a que somos indiferentes, ante o qual nos sentimos constrangidos, quando não ameaçados, e contra o qual reagimos de forma cirúrgica e preventiva. Ante o outro, o rigor da lei, não o desafio do contato. Sendo obrigação ditada de fora, há quem duvide que a correção seja incorporada como conduta ética sincera.
Formas sutis ou rasteiras de discriminação, no entanto, independem da assepsia das palavras. Retirar um sinônimo, aleijar um verbete, não tira a palavra de circulação, nem apaga o sentido que se buscou corrigir. O máximo que fará é colocar em dúvida a nossa capacidade social para o debate.
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O rancor dos dicionários, por Josué Machado
Houve tempo em que o preconceito por razões raciais, religiosas ou sexuais era menos ácido. Na primeira metade do século 20, podiam-se compor sem problema marchinhas como Nega maluca, O Teu Cabelo não Nega, Cabeleira do Zezé, Alá, Meu Bom Alá sem a carga de azeda intolerância comum hoje. Época em que dicionários registravam coisas como:
Cigano - "indivíduo que faz compra e venda de animais, mas sempre de má-fé; chicaneiro, trapaceiro, burlador; (...); o que pede preço alto por mercadoria e acaba por entregá-la por preço muito inferior; ladino, esperto; bajulador, lisonjeiro, impostor; no Brasil, sovina, agiota". (Grande Dicionário da Língua Portuguesa, Antonio de Morais Silva, 10ª edição, Confluência, Portugal, 1951).
Note-se que essa edição suaviza os termos da edição original, de 1813:
"Ciganos, s.m.pl. Raça de gente vagabunda, que diz vem do Egito, e pretende conhecer de futuros pelas rayas, ou linhas da mão; deste embuste vive, e de trocas, e baldrocas; ou de dançar, e cantar: vivem em bairro juntos, tem alguns costumes particulares, e uma espécie de germania com que se entendem" ("Baldroca" é trapaça, logro; e "germania", gíria, calão).
Nada mudou muito nos dicionários desde então. É da década de 50 a acepção do respeitável Aulete (editora Delta, 1958): "indivíduo que transaciona em animais, mas sempre de má-fé". Como adjetivo: "astuto, velhaco, trapaceiro".
Pois o Houaiss, o Aurélio e o Aulete Digital registram noções parecidas, já que dicionários não são manuais de bom comportamento nem de defesa de noções politicamente corretas. Relacionam palavras em uso, dão-lhes as definições e anotam usos, convenientes ou não, dependentes dos costumes.
O Aurélio suaviza o que se avizinha do preconceito: "Cigano: (figurado) Indivíduo boêmio, erradio, de vida incerta. Negociante esperto, vivo. Vendedor ambulante". NoAulete Digital, o mesmo cuidado: "Fig. Indivíduo boêmio, de vida incerta. [Por vezes, com uso pejorativoj.] Pejorativo - Negociante esperto, vivo".
Já o Houaiss é vítima de sua precisão ao registrar, como pejorativa, a acepção fixada no século 19. O Grande e Novíssimo Dicionário da Língua Portuguesa, de Laudelino Freire (José Olympio, 3ª edição, 1957), define: "Indivíduo que faz negócios de compra e venda de animais, mas sempre de má-fé".
Mudanças
Mas há coisas mais graves. É só ver "judeu" e "negrada". "Judeu", no Aurélio: "indivíduo avaro, usurário"; Houaiss: "pessoa usurária, avarenta". O Aulete Digital não traz acepção negativa. De "negrada", Houaiss: "reunião de desordeiros; malta". Aulete Digital: "grupo de desordeiros". O Aurélio não registra tais conceitos. O fato é que acepções de vários verbetes poderiam embasar ações judiciais ciganas. Alguém poderia atiçar o Ministério Público até contra a Santa Sé e a bancada evangélica. Pediria indenização e retirada da Bíblia de circulação, pois ela descreve terríveis casos de violência, inclusive sexual, fratricídio, adultério, enganações, discriminações contra minorias e outros pecados variados.
Vá lá que alguém resolva ganhar algum dinheiro extra com uma açãozinha judicial distraída...
Desinfetando as palavras
1955
O jornalista Fernando Levisky lança a "Campanha dos dicionários", para banir sinônimos ofensivos contidos em obras escolares, como "judeu" (avarento), "negro" (maldito), "brasileira" (cachaça), "favela" (morada de negros e malandros), etc. Com a mobilização, muitas acepções pejorativas saem do Dicionário Contemporâneo (1958), de Caldas Aulete.
1961
Em julho, o presidente da República Jânio Quadros decreta que o Dicionário Prático da Língua Portuguesa, de Francisco da Silveira Bueno, retire "conceitos que não podem ser levados em país cristão e democrático à mocidade", como "judeu", "judiação", "negro", "jesuíta" e "favela". A medida foi deixada de lado após a renúncia de Jânio.
1999
O movimento contra o preconceito relacionado à aids reverte a tendência da imprensa de usar o termo "aidético". A política cultural seguiu a precisão científica: nem todo soropositivo desenvolve doenças.
2005
A Secretaria Especial de Direitos Humanos edita cartilha com 96 termos a serem evitados por funcionários públicos. "Barbeiro" (motorista inabilidoso), "conservador" e "A coisa tá preta" estavam na lista. A grita foi tal que a ideia foi engavetada.
2008
O deputado federal Frank Aguiar (PTB) pede ao Ministério do Trabalho que troque o termo "faxineiro" por "profissional de limpeza" na Classificação Brasileira de Ocupações, aquela que define a identificação de atividades na carteira de trabalho.