Se os esquimós têm inúmeros sinônimos para “branco” ou “gelo”, é de se imaginar quantas palavras os brasileiros podem criar para referir-se à propina, essa prática tupiniquim mais arraigada do que a neve nos círculos polares. Nos dicionários, são correlatas: beberete, blefaia, emolumento, espórtula, lambidela, lambuja, molhadela, sobrepaga, xixica. Na boca do povo, a última apareceu na semana passada, em meio à Operação Lava-Jato: “pixuleco”. Era como os políticos envolvidos no esquema de corrupção da Petrobras se referiam ao dinheiro recebido nas negociações escusas. Vocábulo sonoro, de rimas fartas, “pixuleco” dá samba — e certamente não demora muito a aparecer em alguma música ou cena de novela.
O que não seria novidade entre nossas canções, romances, novelas, obras de arte ou filmes, onde a corrupção naturalmente aparece como tema. Em “Memorial de Aires”, último romance de Machado de Assis, de 1908, o Bruxo do Cosme Velho lançou mão da palavra “molhadura” ao descrever uma situação levemente suspeita acontecida entre o narrador do romance e um cocheiro que acabava de lhe prestar informações sobre a mulher de um sujeito recém-enterrado: “Desci, dei ao cocheiro a molhadura de uso, e enfiei pelo corredor”.
— Machado de Assis não costumava usar expressões das ruas, então provavelmente esse era um termo mais formal à época — observa o pesquisador Claudio Melo, da Academia Brasileira de Letras. — Pouco antes disso, em “Esaú e Jacó” (1904) ele usou a palavra “gorjeta” também com o sentido de propina. E o curioso é que o verbo “propinar” ele usava com sentido que praticamente desconhecemos, e que é o certo, “dar de beber”.
Diferentemente de Machado, o escritor João Antônio (1937-1996) aproveitava tudo o que era falado nas ruas para seus contos. Ele andava com um caderninho no bolso para anotar o que ouvia (um fac-símile deste glossário informal foi lançado com seus “Contos reunidos”, da Cosac Naify, em 2011). Um dos termos apontados foi “pixulé” — pela semelhança do radical, um parente distante do “pixuleco”. No conto “Paulinho perna torta”, de 1993, João Antônio usa “pixulé” para se referir ao trocado ganho por um engraxate: “Humilde, meio encolhido, eu recolhia a groja magra. Tudo pixulé, só caraminguás, nota de dois ou cinco cruzeiros. Mas eu levantava os olhos e agradecia”.
A música tem muitos exemplos. No samba “Cosme e Damião” (uma referência à dupla de policiais), de 1953, o compositor Wilson Baptista descreve a cena: surpreendido por dois guardas quando estacionava na contramão, o narrador oferece um “cigarro” a um deles: “Conversei com o Cosme, dei um cigarro pro Damião/ Expliquei aos bons soldados que mostrava o Pão de Açúcar à Conceição...”
O historiador Luiz Antônio Simas lembra de outra:
— No meio da malandragem, “dar um arrego” é pagar a propina. O Bezerra da Silva gravou um samba chamado “Defunto morto não fala” em que Satanás pede para São Pedro aceitar o arrego e limpar a barra do malandro.
DE ‘TROPA DE ELITE’ AO ‘CASSETA’
A letra fala por si: “Enquanto o defunto era autopsiado/ A alma do bicho lá no céu chegou/ Mas São Pedro quis saber do pó/ Também dando uma de investigador/ Foi aí que pintou o capeta/ Dizendo “Malando ele é o meu convidado, o pó que ele trouxe eu faço a cabeça, por isso São Pedro trate de arregá-lo”.
Jackson do Pandeiro usou com ironia o termo “jabaculê”, outro sinônimo informal de propina, na música “Tem jabaculê” (“No meu samba só vai quem tem jabaculê”). Moreira da Silva usou “partidinho” na música “Malandro em sinuca”, outra pérola (“Posso, posso jogar, mas o senhor tem que me dar um partidinho”).
E quem não se lembra da expressão “faz-me-rir” usada por policiais no filme “Tropa de elite”, para se referir ao “caixa dois”, ou da cena em que o protagonista do filme “Meu nome não é Johnny” oferece um “cafezinho” para se livrar de uma dura? “Cafezinho”, bem como “leitinho das crianças” ou “guaraná”, são eufemismos alimentícios recorrentes na TV. Numa esquete do extinto humorístico “Casseta & Planeta”, toda vez que um personagem pedia uma “cervejinha”, outro aparecia com um engradado. Vale lembrar que o programa fez surgir o clássico personagem “Roubocop, o policial do faturo”, que certamente falava pixulequês .
As artes visuais não ficam de fora. O premiado artista plástico pernambucano Lourival Cuquinha, que costuma usar cédulas de dinheiro como suporte, está trabalhando numa obra batizada de “Suborno”.
— É uma ação que se resume em dividir o pro-labore e o possível prêmio de um salão entre mim e a comissão de seleção. Filmaremos a repartição deste dinheiro com uma câmera escondida e colocaremos em exposição na galeria — explica ele. — Mas até agora ninguém topou encarar o trabalho...