O homem é o produto de suas obsessões. Acho que foi Nelson Rodrigues quem disse. Ou pode ter sido o Nelson traduzido pelo Arnaldo Jabor. Não sei. Não vem ao acaso. Café pequeno. Biscoito de araruta. Não vamos armar um banzé por causa disso. Eia. Sus. Sigamos.

 

O homem é o produto de suas obsessões, está redito, é eu pensei nisso depois que o telefone tocou e do outro lado da linha era o querido Maurício Sherman, um dos ombros sobre os quais se ergueu a televisão no Brasil. Ele me pedia a cópia de um punhado de textos que andei perpetrando sobre palavrinhas e expressões antigas. Mequetrefe. Fuzuê. Salafrário. Estrovenga. Pata choca. Essas coisas. Sei que palavras e plumas o vento leva. Se ninguém registrar as primeiras, elas se escafedem como as segundas. Pegam um golpe de ar, um vento encanado, e babau. Ficamos com a língua cada vez mais pobre, parecendo um cachorro sem plumas e sem poesia.

 

Os redatores do “Zorra total”, o programa de humor da Rede Globo, estão bolando um personagem que só fala usando borogodó como vírgula e, claro, Maurício Sherman, meu eterno diretor do Teatrinho Trol, se lembrou da obsessão matusquela que tenho por debalde, nefelibata, à socapa, à sorrelfa e afins. Fê-lo bem em telefonar e eu, honrado, mandei-lhe os textos. Foi aí que me veio de chofre a sabedoria de que o homem é o produto de suas obsessões. Lembrei de cupincha, de botar a mão na consciência, de capilé, de tentear e principalmente de cabuloso, essa delícia de que mamãe, para meu pasmo ignorante, tantas vezes me acusava, e agora vejo, com razão.

 

Achei uma maldade que essas palavrinhas e expressões maravilhosas, deixadas de fora nas outras vezes em que naveguei nessa geringonça semântica, não realizassem a vocação natural de todas elas – um dia serem eternizadas num bom jornal de família.

 

Vivo das palavras. Com essas lembranças procuro assoprar no cangote de cada uma a certeza de que não há qualquer bruaca ou bacurau entre elas. Todas lindas, fofas, uvas, aviões, boazudas serelepes, salsaparrilhas emperiquitadas na medida, prontas para o nhenhenhém gostoso com os verbos de sua afeição. Eu, aqui genuflexo, me declaro mais uma vez por todas enrabichado. Nenhuma desmilinguida ou embusteira. Todas necessitadas apenas de se ajustarem às novas vírgulas. Aos períodos curtos do texto esperto. Não seria justo deixar que ficassem na poeira dos dicionários e nos apagões das memórias. Era só o que me faltava. Dar um beiço nas minhas palavrinhas. Deixar que azulassem de nossas falas, vítimas do banzo moderno de agregar transparência e outras bazófias ao papo.

 

Omessa! Anátema! Papagaio! Cáspite! Blasfêmia! Felizmente, eu percebi que não estou sozinho nesse rega-bofe com nossas doces sibaritas.

 

Nelson Rodrigues, com quem aprendi apostar nas minhas obsessões e a pedir licença para ir ao reservado, me compreenderia o tirocínio. No máximo, ele pediria menos sofreguidão na hora de obtemperar contra os fariseus no templo vernacular. Nelson, tenho pra mim, diria: “Calma que o Brasil é nosso, seu Joaquim!”

 

Sherman, antes de desligar o telefone, pediu que eu parasse de ser trouxa com esse paradigma jornalístico de precisar apresentar sempre um assunto novo. Que maçada, não é seu Joaquim? Fogo na roupa! E aqui estou, com seu beneplácito, sem qualquer ineditismo, falando mais uma vez do que me deu na telha e na libido intelectual.

 

Roberto e Helena Cortes de Lacerda são outros que fecham comigo. Acabam de chegar às livrarias com um Dicionário de Provérbios e sabem às pampas que palavras melosas não temperam sopa. Devem adorar lambujem, balela, boquirroto e botar lenha na fogueira. Aprendi com eles que caxumba no pescoço dos outros não dói, e como o pescoço diante da folha em branco é o meu, tenho certeza que também me liberariam para exercer outra vez a obsessão maldita e clamar para que não morram maravilhas como cascabulho, caraminguá e apêndice do caqueirada. Assim:

 

Que horas são? Dez e caqueirada. De quando são essas palavras? Mil novecentos e lá vai fumaça. Quanto eu estou levando para exaltá-las? Acredite. Nem um peru.

 

Achei, com companhias tão ilustres, que estava liberado para não picar a mula dessa frente de batalha que eu inventei e aqui chamo de novo a radiopatrulha para proteger nossas queridas. Arrelia. Bruzundanga. Embromar. Patacoada. Xongas. Capadócio. Essas palavras que pelas mãos de Maurício Sherman vão dar um gás no humor da televisão podem funcionar no papo cotidiano como uma gemada naquela base, com muita noz-moscada e canela.

 

Podem trazer a sustança reconstituinte de uma Caracu com ovo no capricho, batida com casca e tudo no liquidificador. Fortalecem a língua. Vai por mim. Xaveco coisa nenhuma.

 

Não é uma onda de araque, nem se quer tirar casquinha de defunto já no osso. Sou do tempo em que ficar indignado era bom – e aqui vai bronca. Perdemos o prezo por esse bem fundamental, a língua que se fala e nos dá unidade civil. Bagunçaram o coreto. Levaram a Amazônia, levaram nossos jogadores, a Bebel Gilberto, e agora, se bobear, vai-nos, por ignorância, a língua também. Os jovens, u-hu, têm preguiça de ir além de um dissílabo. O presidente da República, por mais machista que seja o bonifrate, não devia saber exatamente o que falava outro dia quando chamou as mulheres de desaforadas. Chofer do nosso dicionário bateu com o lotação – e me deu outro gancho para voltar ao assunto.

 

Se até as palavras ficaram desgovernadas, é hora de deixar de ser fuinha e dar uma olhada no passado dessas sirigaitas maravilhosas.


Glossário 


Fonte - Santos, M.M. 2010. Novas crônicas, velhas palavras: Em busca do borogodó perdido. Dissertação de mestrado, Instituto de Letras, Universidade Federal da Bahia.


Anátema – 1 sentença de maldição que expulsa da igreja; excomunhão 2 p. ext. reprovação enérgica; condenação, repreensão, maldição, execração; que ou aquele que foi atingido por anátema; excomungado.


Araruta – 1 erva da família das marantáceas, de, flores esbranquiçadas e frutos indeiscentes. 2 fécula branca e nutritiva, extraída do rizoma dessa planta.


Arrelia – 1 amofinação, apoquentação 2 falta de paciência; pressa, sofreguidão 3 contenda, rixa, desavença 3.1 conflito entre muitos; rolo, confusão, refrega. 


Banzé – 1 dança africana p. ext. festa popular com danças ao som de viola 3 clamor de vozes; algazarra 4 situação em que é perturbada a ordem; banzé-de-cuia, confusão, tumulto.


Banzo – 1 processo psicológico que levava os negros africanos escravizados, transportados para terras distantes, a um estado inicial de forte excitação, seguida de ímpetos de destruição e depois de uma nostalgia profunda, que induzia à apatia e, por vezes, à loucura ou à morte 2 p. ext. afetado por tristeza ou por um infortúnio; que revela abatimento; desgostoso.


Bazófia – 1 vaidade exacerbada e infundada; vanglória, presunção 2 m.q. fanfarrice 3 ensopado feito com sobras de comida.


Beneplácito – 1 expressão de consentimento; abonação; concordância, aquiescência 1.1 aprovação régia, de autoridade, de instância superior etc., mediante despacho, boa vontade, intenção benigna.


Boquirroto – que ou quem não consegue guardar segredos; indiscreto, boca-rota.


Bruzundanga – 1 coisa de pouca serventia ou inútil; insignificância, ninharia 2 amontoado de coisas inúteis ou de escassa serventia; 3 falta de ordem; confusão, barafunda 4 linguagem confusa, difícil de entender; algaravia 5 coisa malfeita, mal realizada 5.1 comida mal preparada, de aspecto nojento 6 garrafa de feitiçaria; mezinha.


Cabuloso – 1 que traz ou tem azar; azarento 2 que aborrece; maçante 3 desagradável, antipático 4 complicado, obscuro.


Capadócio – 1 relativo à Capadócia, província central da Ásia Menor 2 que ou aquele que é pouco inteligente; ignorante, burro 3 que ou quem é impostor; trapaceiro, charlatão 4  que ou quem tenta enganar outros dando-se ares importantes 5 que ou quem tem modos de canalha.


Capilé – 1 calda ou xarope feito com suco de avenca 2 bebida refrescante que se faz ao misturar essa calda com água 3 p. ext. PB refresco de frutas com água e açúcar 4 CE bebida alcoólica feita de polpa de tamarindo e aguardente.


Caqueirada – 1 quantidade de caqueiros 2 p. ext. amontoado de trastes velhos, sem serventia 3 pancada com caqueiro 4 p. ext. pancada, choque, batida 5 m.q. bofetada 6 arremedo de luta com arremesso de cacos, durante o entrudo.


Caraminguá (caraminguás) –1 pertences de pouco valor que se levam em viagem 2 mobiliário de casa modesta; tarecos 3 dinheiro em espécie, cesto, arca, caixa, canastra onde o índio guardava seus pertences.


Cascabulho – 1 casca de vários frutos e sementes, esp. a das castanhas e da glande dos carvalhos 2 coisa de pouca importância 3 estudante de preparatórios ou humanidades 4 quantidade de cascas 5 maçaroca de milho.


Cáspite – exprime admiração ou espanto, geralmente com ironia ou com tom jocoso; bom.


Estrovenga – 1 coisa complicada, esquisita, fora do comum, estrupício 2 BA foice de dois gumes e de pequena proporção.


Lambujem - 1 ato de comer gulodices 2 guloseima, lambarice 3 resto de comida deixada nos pratos 4 B m.q. lambuja.


Matusquela – que ou quem não é bom da cabeça; doido.


Nefelibata – 1 que ou quem vive nas nuvens, que ou quem é muito idealista 2 que ou o que não obedece às regras literárias (diz-se de escritor).


Obtemperar – 1 argumentar com humildade e moderação; ponderar 2 pôr-se de acordo; assentir, aquiescer.


Patacoada – 1 dito ou ação ilógica; disparate, tolice 2 gracejo desabusado; brincadeira, chocarrice 3 vaidade ridícula; bazófia 4 B dito mentiroso; lorota.


Sibarita – 1 relativo a Síbaris, antiga cidade na magna Grécia 2 diz-se de ou pessoa dada aos prazeres físicos, à voluptuosidade.


Socapa – 1 qualquer coisa usada para disfarçar (-se); máscara 2  ação de enganar maliciosamente; fingimento.


Sorrelfa – 1 dissimulação silenciosa para enganar ou iludir; sonsice, socapa 2 diz-se de ou pessoa matreira, manhosa, dissimulada 3 diz-se de ou pessoa mesquinha, avarenta.


Xongas – coisa nenhuma; nada.