Quem inputou que desinpute
Quando ouvi aquilo pela primeira vez, achei que era só uma excentricidade. Mas a primeira vez deu lugar à segunda, a segunda à terceira, sempre com falantes diferentes. A quarta ocorrência me encontrou preparado: claro, claro, demos agora para conjugar o verbo "inputar", estrangeirismo formado de modo regular pela junção do inglês input (o ato de enfiar, de por para dentro, ou aquilo que se põe para dentro) com o sufixo "ar". Parente, já se vê, de "deletar", "printar", "ressetar" e outras ações realizadas diante de uma tela e um teclado. Paciência. Macaco velho não inputa a mão em cumbuca e sabe que, se o Vale do Silício ficasse em Jacarta, impetraríamos nossas palavras do javanês.
0 problema é que passou o espanto inicial e o diabo do "inputar" continuou incômodo, resistente a todas as argumentações linguisticamente avançadas sobre estrangeirismos. Passada a décima audição, ainda está atravessado na garganta. A necessidade de sua criação simplesmente não se me inputa na cabeça. Sim, eu sei que as línguas, organismos vorazes, sempre fizeram valer aquele dito popular: o que não mata, engorda. Sei também que o estrangeirismo de ontem é o vernáculo de hoje, basta lembrar que na virada do século XIX para o XX sofremos do francês um bombardeio semelhante ao que agora nos chega do idioma de Bill Gates. Graças a ele nossas casas se encheram de abajures, ora veja, viva o progresso.
Por fim, sei também que a imagem de uma língua portuguesa acamada, lívida e dodói como uma donzela romântica, e portanto necessitada da proteção de um cavaleiro quixotesco com seu elixir antiestrangeirismo, é um absurdo que só se explica pelo misto de ingenuidade e demagogia que cerca o projeto de lei do deputado Aldo Rebelo. No entanto, se sei de tudo isso, por que "inputar" se recusa a tomar assento na língua do dia a dia como "deletar", seu primo enturmadinho?
Alguns diriam que é porque "deletar" tem antepassados nobres. Certa vez fui chamá-lo de estrangeirismo - o que de fato é - e despertei ondas de indignação. Vários leitores me escreveram dizendo que está tudo em casa porque o verbo to delete, em inglês, vem do latim deletum, forma nominal de delere. Os leitores estão certos, mas e daí? Desde quando ancestrais comuns deletam a estrangeirice dos estrangeirismos? Em português, delere veio a se tomar "delir", que, além de pouco usado, não dá conta do sentido informático de deletar. E é exatamente esse sentido que toma "deletar" um forte candidato à perpetuação em nosso vocabulário. Quem deleta não apaga simplesmente apaga no computador. O significado é mais preciso, e a precisão costuma vencer.
Apliquemos então o teste da precisão: haverá alguma em "inputar"? Input é um vocábulo de diversos usos em inglês. No sentido econômico refere-se àquelas coisas, como dinheiro e trabalho, que metemos num negócio para que ele funcione e costuma ser traduzido por "investimento". No sentido fabril tem a ver com matérias primas, e a necessidade de um equivalente nacional levou à cunhagem do neologismo "insumo", que foi parar no Aurélio em 1975 e hoje está consagrado. No sentido informático, input é a informação com que se alimenta um computador. Para passar tal ideia, usamos duas soluções: quando ação, a expressão "entrar com (os dados)"; quando substantivo, "informação" mesmo.
Vê-se, portanto, que precisão não é o forte de "inputar". A elegância eu nem comento. Falta falar apenas do problema ortográfico, que os mais perspicazes já terão observado: o espírito do português se contorce todo diante dessa grafia, com o ene antes do pê. Se vingasse em nossa língua, é bastante provável que "inputar" acabasse transformado em "imputar", com eme - verbo já existente, como se sabe, e de largo emprego jurídico com o sentido de "atribuir responsabilidade."
Deve ser por uma mistura de tudo isso que "inputar" se recusa a soar bem. É um estrangeirismo que carece de nexo sob todos os aspectos, exceto, talvez, o da subserviência macaqueira ao idioma mais forte. Mesmo sabendo que desse modo inputo em minha crônica os riscos da futurologia, ouso prever vida curta à novidade. Com ou sem a interferência do deputado Aldo Rebelo, paladino da "pureza" do português. A lei que a condena, velha de séculos, nunca precisou ser escrita.