O que um brasileiro médio, desses que existem apenas nas estatísticas e que no entanto somos todos nós, entende do que é dito todos os dias na TV, nos jornais e, mesmo, na rua? Pouco, provavelmente, bem pouco caso pare e reflita no que lhe entra por olhos e ouvidos em vez de entregar-se ao hábito lânguido de receber as impressões do mundo exterior através de uma atenção flutuante. As palavras estão dizendo menos do que pretendem dizer, ou mais, ou exatamente o contrário, ou outra coisa, ou nada. E as situações em que aparecem, por elas contaminadas, tornam-se cômicas, trágicas, atoladas que estão numa linguagem alucinada e mistificadora, deslumbrada e perversa, poderosa e invertebrada.
O que se lê e ouve é uma linguagem que mais esconde do que revela, que busca freneticamente ostentar uma erudição precária ou inexistente, que receia afirmar opiniões, que oculta a realidade, que exibe um desejo incontido de potência e não consegue deixar de se trair, pondo à mostra suas fraquezas, os cadáveres ocultos em seus armários. É uma linguagem temível e ao mesmo tempo ridícula e ridicularizável.
Exemplos:
Acessar
Entrar. Hoje, entra-se num prédio mas não no programa de um computador ou no arquivo de um programa: deve se "acessá-lo", já que "ter acesso a ele é decididamente longo demais para o novo tempo computacional.
Entrar era intransitivo, seu correspondente informático é transitivo direto ("Acessei o programa"; "Como é que você acessa ele?"); a transitividade indireta (“Acessei-lhe o programa") ainda é sofisticada demais para o usuário padrão: de qualquer forma, é toda uma nova visão de mundo se instaura.
Permite construções como "foi acessado", que gera estranhas e perturbadoras imagens na mente de quem a ouve ou lê.
Administrar
"O Corinthians não soube administrar sua vantagem jogo."
"Esse piloto nunca consegue administrar sua vantagem na corrida."
O mundo dos negócios conseguiu impor, ao mundo e à vida em geral, a ideia da necessidade (e superioridade) de recorrer-se a uma ciência da organização científica ou técnica de tudo. Não sobra lugar para ideias como "manter, controlar, explorar, assegurar, sustentar, defender, conservar". Tudo tem de ser administrado.
Não há como fugir do imaginário econômico. Dificilmente pôde Marx prever a amplitude da repercussão de sua teoria sobre a precedência do fato econômico na vida social mesmo entre seus opositores.
Artista plástico
Quando perguntado, Volpi sempre se dizia um pintor. Hoje, o artista, mesmo dedicando-se a um único gênero, apresenta-se sob o manto misterioso, genérico e plural do "artista plástico". "Pintor" parece pouco e, no fundo, vulgar. E "artista", apenas, pode fazer crer que se trata de artista de circo ou TV, profissões sem nenhum charme intelectual, como se sabe.
Colocação
"Quero fazer uma colocação." (De um psicanalista numa mesa-redonda na TV. Também, de quase todo mundo fora da TV - políticos e universitários, sobretudo.)
As pessoas deveriam ter o bom gosto de não fazer colocações em público. O psicanalista queria anunciar que tinha algo a dizer. Os mais sofisticados usam "colocar" em vez de "fazer colocação": "quero colocar".
"Colocar" e "colocação" devem gerar a sensação de que se transmite algo material, com corpo e peso. São mais fortes que "dizer" (como em "quero dizer”), quem as usa tem mais possibilidade de ser ouvido. Produz a impressão de que o que vai ser dito tem peso, merece ser ouvido.
Comunicação social
Como na expressão "cursos de comunicação social". Pressupõe a existência de uma comunicação que não seja social, curioso fenômeno. Difícil entender o que se pretende significar por meio dessa expressão. Ela poderia apontar, por exemplo, para tudo o que não seja publicidade e propaganda, o que no fundo seria muito adequado. Mas os cursos de "comunicação social" incluem essas áreas e esses estudos em seus currículos. Ela poderia ter sido forjada para que não se fizesse confusão com uma outra eventual comunicação, a dos animais, que, como insistem alguns, não constituem uma sociedade. Isso, no entanto, seria demais. Caberia, assim, observar que a comunicação só pode ser social se não nos lembrássemos de que, no Brasil, o termo foi adotado nos labora tórios do regime ditatorial dos anos 60-70 para designar e implantar na universidade um currículo de comunicação "não ideológica", i.e., estudos de comunicação que não contrariassem as crenças dos então governantes e não contribuíssem para a contestação a seu modelo.
Contundido
O som é pior que a dor sentida. Considerando o salá rio que recebem, os atletas e esportistas não podem, como as pessoas comuns, apenas se machucar: eles se contundem.
Dele
"O chimpanzé foi sedado e colocado na jaula dele." (De um noticiário da TV).
O apresentador teme que se disser "foi colocado em sua jaula" o telespectador se assuste pensando que o chimpanzé foi colocado na jaula dele, telespectador. Como em "O empresário foi baleado ao entrar na casa dele" e tantos outros. Ao dizer o "dele", o apresentador invariavelmente faz uma pausa na leitura de seu (dele) texto, olha ainda mais fixamente para o telespectador e sublinha a palavra como se sua (dele, apresentador) voz tivesse um pincel atômico.
Deletar
Remover, eliminar, cancelar, apagar. Forma, com "acessar" um par de conceitos opostos sobre o qual se estrutura toda a lógica do novo pensamento informacional. Lúgubre, pela disfonia e pela ideia de aniquilamento absoluto e irreversível que transmite. A morbidez que a colore não deixa de exercer um certo fascínio fin de siècle nas mentes inclinadas ao romantismo.
Doutor
Irremovível da língua e das consciências.
Seu uso é ditado pela sensibilidade do interlocutor: 1) políticos velhos a exigem sempre; alguns candidatos a cargos eletivos (quando brancos, paulistas, empresários mesmo tendo eventualmente respondido a processo judicial por mau uso de dinheiros públicos) são com ela brindados espontaneamente por entrevistadores de TV, enquanto outros, não; 2) quanto menor a firma, maior a necessidade de usá-la para designar seu dono; 3) não é imprescindível dizer "doutor advogado", mas é prudente empregar "doutor delegado"; 4) advogados, aliás, são muito cônscios do título (as advogadas, em particular); 5) os únicos que não são assim chamados e nem sempre exigem assim ser chamados são os que obtiveram um título de doutor pela universidade e estão legalmente habilitados a exibi-lo.
Quando se recorda que significa “instruído", "que ensina", "que pode ensinar”, a situação pode às vezes assumir ares cômicos.
Empresário
Dono, patrão; estas cederam lugar àquela por compatíveis com o espírito do moderno capitalismo liberal e neoliberal em vigor no país: dizem muito na cara o que realmente são.
Essa designação provavelmente passou a ser adotada quando se decidiu ser a ação das pessoas dedicadas às atividades específicas de acumulação do capital aquela que promove o cresci mento do país. Quem trabalha com suas forças próprias, sem capital, jamais fará o pais crescer (nem a si mesmo, de resto) e nunca poderá nada empreender. Este, na verdade, é um completo inútil, algo supérfluo, e dele a nova economia saberá dar conta; melhor, a ele a nova economia saberá dar as contas.
Ilmo.
Ilustríssimo. Forma invisível da ridicularia linguística: todos a veem, ninguém a percebe. Aparece em envelopes e é repetida no cabeçalho de cartas. Atinge o paroxismo no ambiente universitário, como neste caso:
Ilmo. Sr. Prof.
Dr. XPTO
DD. Diretor da ZYZ
ou, caso ainda mais radical:
Ilmo. Prof.
Dr. XYZ
Magnifico Reitor da etc.
e que se traduzem por: "Ilustríssimo Senhor Professor Doutor XPTO, Digníssimo Diretor da" e "Ilustríssimo [às vezes Exmo., Excelentíssimo] Professor Doutor XYZ, Magnífico Reitor etc."
Quem não é nem doutor, nem diretor, nem chefe, nem reitor tem, em todo caso, direito a um "MD", que é para ser lido "mui digno", como em:
Ilmo. Sr.
Beltrano de Tal
MD Assistente Disto ou Daquilo
Mas não se deve entender que a universidade detém monopólio dessa prática. O mundo da justiça (diverso do nosso, quer dizer, do mundo de todos os dias) é pródigo em vocativos; ali, um procurador-geral da República é sempre um "Exmo. Senhor", um Excelentíssimo Senhor assim como os juízes são inevitavelmente MM, Meritíssimos, de grandes méritos. Na política, a prática é a mesma, com qualquer deputado tendo direito automático ao V. Ex. ou S. Ex., Vossa Excelência e Sua Excelência, conforme o grau de intimidade com o interlocutor (e que ainda matam de rir as criancinhas quando vêm na forma de um sonoro "V. Ex. é uma besta no plenário da Câmara focalizado pela câmera de TV).
No lugar onde, em outros países, um único titulo basta, como Mr. President, e as vezes é demais, usa-se aqui, não seis. Não há cinquenta ou cem anos, mas hoje. Os estrangeiros espantam-se com o comprimento de nossos nomes próprios, que comportam por vezes um prenome duplo e mais dois ou três sobrenomes. Não devemos revelar-lhes nossas práticas vocativas porque corremos o risco de vê-los formulando uma nova regra de economia: quanto mais longos os títulos com que as pessoas exigem ser invocadas (com títulos assim, as pessoas não são chamadas, mas invocadas), mais subdesenvolvido é o país.
Herança (ou banzo) da casa-grande & senzala.
Levantar uma dúvida
A ninguém ocorre "abaixar uma certeza". Dúvidas devem ser levantadas sem que se saiba se será possível, em seguida, abatê-las. O despencar de uma dúvida não equivale ao soerguimento de uma certeza. É raro aquele que tem uma dúvida. Parece menos auto-incriminador levantá-la.
De onde essa dúvida é levantada? Para onde é levantada, para quem?
Linguagem jurídica
Exemplo: "Mandato de segurança contra ato judicial passível de recurso sem efeito suspensivo; desde que ocorrentes os pressupostos constitucionais do mandato de segurança (CF, art. 152, parágrafo 21) e desde que tenha sido interposto, a tempo e modo, o recurso próprio sem efeito suspensivo (porque, além do mandamus não ser sucedâneo de recursos processuais, a decisão irrecorrida é acompanhada pela preclusão), se do ato judicial resultar a possibilidade de dano irreparável, ou de difícil reparação, admite-se o mandado de segurança para que sejam tolhidas, de pronto, as consequências lesivas da decisão impugnada. É que o periculum in mora da prestação jurisdicional faz nascer causa petendi de outro direito de ação, assim do direito do mandado de segurança, distinto da ação em curso." (Do jornal citando a revista LEX, vol. 8, pág. 131.)
A transcrição é fiel ao original, nenhuma palavra ou letra foi acrescida ou subtraída: a obscuridade é estrutural, faz parte da linguagem, de sua gênese e, provavelmente, de seus objetivos. O depoimento tomado pelo escrivão em qualquer delegacia, e que deve ser assinado pelo depoente, é tão obscuro e misterioso para este mesmo quanto o acordão aqui reproduzido ou a sentença que absolve o inocente ou condena o culpado. Uma professora universitária de linguística declarou ao jornal não ver nada de estranho nisso, uma vez que as peças judiciais ou policiais têm uso interno e não se destinam ao público externo. A partir dessa fantástica opinião (um "parecer", na linguagem acadêmica), compreende-se como foi possível neste país, durante a ditadura mais recente, estabelecer leis secretas, i.e., não divulgadas, mas que nem por isso poupavam alguém de ser por elas punido se as violasse. Como a ninguém é permitido alegar desconhecimento das leis para eximir-se de cumpri-las, conclui-se que o mais prudente para o brasileiro é manter constantemente afiados seus dons de ofício clarividência, intelecção e adivinhação.
Fica claro também que a função do advogado é muito menos a de um defensor que de um tradutor ou mediador, o que é muito coerente com nossa tradição cultural.
A nível de
"Esta afirmação nunca foi feita a nível de acusação."
A partir dos anos 60, mais intensamente a partir dos 70, acadêmicos e estudantes de pós-graduação esforçavam-se por usar essa expressão tão frequente e corret mente quanto possível, seguindo os exemplos lidos nos eruditos ensaios franceses, mas sem muito sucesso. Aos poucos, foi penetrando em outras camadas da população, atravessando as de cultura média e chegando às mais baixas. Hoje, presente a todo instante. Sinal inconfundível de erudição.
Palavra-prótese ou palavra-muleta: substitui variadas outras. Também, quando não ocorre o que dizer, solta-se essa expressão para ganhar algum tempo. No mínimo, deveria ser usada a forma ao nível da", mas, nesse caso, a impropriedade e o ridículo saltariam aos olhos.
Postura
O que era uma característica típica dos galináceos hoje tomou de assalto as páginas dos jornais, dos livros e as falas de todo mundo, públicas e privadas. Tudo é postura, não há mais decisões, atitudes, manifestações, inclinações. Seu uso é considerado sinal de erudição.
Segurança
"Os dois seguranças foram baleados pelos assaltantes".
Herança do regime militar e sua doutrina da segurança que deveria aplicar-se a todos os níveis da vida nacional. Antes, eram os guardas que exerciam a mesma função, ou os guarda-costas. "Segurança", como se percebe, é mais moderno. Como tal, deveria assustar mais os marginais, como a maior da parte do que se refere à lei, intima apenas os que a observam. Agora, além de a insegurança ter crescido extraordinariamente, inclusive a dos próprios seguranças, como se vê da notícia, ainda se fica exposto à disfonia da monstrenga concordância de gêneros conflitivos ("o segurança”).
Trabalhador
Não inclui, em seu campo semântico, professores, artistas, jornalistas, políticos, militares etc. Para a maioria, as duas primeiras categorias são compostas por pessoas que não trabalham mesmo; e essas categorias, elas mesmas, não se veem como trabalhadoras por um irremovível sentimento de casta que nada tem a ver com quantidades reais de dinheiro possuído. Para as demais, não é difícil imaginar por que não são incluídas na lista dos trabalhadores.
Acaba designando os que recebem até determinada faixa salarial e não exercem atividades nobres; refere-se também aos que, embora entregues a essas atividades não nobres, ganham muito mais que qualquer um daquelas categorias especiais, sem no entanto ter acesso aos ambientes por elas frequentados.
É palavra profundamente ideologizada; mas, pelo acima indicado, seu uso habitual revela um desconhecimento da oposição básica "capital x força de trabalho", que manda considerar como trabalhadores todos os destituídos de capital.
Visualizar
"Visualizei três exposições de arte eletrônica nesta viagem." (De um artista plástico, em conversa)
Ele viu. Na Idade Média o olho desbancou a audição como sentido privilegiado de relação com o mundo, como instrumento da imaginação. O olho é desbancado agora por instrumentos intermediários: só se visualiza aquilo que não se tem diretamente diante dos olhos. Provavelmente, só se visualiza aquilo que é captado por uma câmera de TV. Nem um artista plástico usa mais seus olhos. Em todo caso, soa muito erudita.