Ambígux, ambíg@s e ambígues
Todo mundo já deve ter esbarrado com esta travessura politicamente correta de grande sucesso em redes (mas não só nelas): um x, uma arroba ou um e com substitutos da vogal o naqueles plurais que englobam os gêneros masculino e feminino.
Como se sabe, nossa língua não herdou do latim o gênero neutro. A tradição manda o masculino quebrar o galho nesse papel, abarcando os dois gêneros. (Machismo ancestral? Parece não ser tão simples, como veremos.)
Como provocação, tomada de posição política, expressão iconoclasta da liberdade de moldar a língua, o x, a arroba o e valem. O ativismo que envolve seu emprego não se limita à denúncia da suposta desvalorização do feminino embutido na regra do plural. Prega também a inclusão de quaisquer gêneros alternativos no sentido de orientações sexuais - já inventados ou ainda por inventar.
Digamos que até aí esteja valendo. Nem só de gramatica vive o homem (e a mulher e os transexuais e todo o etc. do mundo). Pinta o bigode na Mona Lisa quem quiser, pois entre outras coisas a língua é isso mesmo: uma caixa de Lego para falante e um campo de batalha simbólica para diferentes grupos de interesse.
O problema começa quando os cultores da novidade tentam fazer dela, inclusive em ambientes acadêmicos, uma proposta de intervenção gramatical. É importante dizer que esse x, essa arroba e esse e têm tanto valor gramatical quanto um emoji, um coraçãozinho que significa "amo", um blz no lugar de beleza. Ou seja, nenhum.
Amigxs, amig@s e amigues são signos agramaticais que invertem a ordem natural dos fatores de qualquer língua, começando escritos para depois serem orais - e, pior, só amigues não fracassa antes de atingir a oralidade.
Por razões profundas e puramente linguísticas, nada a ver com ideologia (nem com a gramática normativa), acredito que esse tipo de plural está condenado a ser modismo esquecido em futuro não muio distante.
Quanto ao "machismo ancestral"...
Gênero gramatical é uma coisa, sexualidade é outra. No entanto, ainda que consideremos natural o embaralhamento ingênuo dessas categorias, há evidências na gramática história de que o machismo não é a explicação (pelo menos não única) para o papel neutro assumido pelo gênero masculino na língua portuguesa.
Com a palavra, o linguista Aldo Bizzochi:
[...) a razão pela qual usamos o gênero masculino para nos referir a homens e mulheres não é ideológica, mas fonética. Em latim, havia três gêneros masculino, feminino e neutro -, cujas terminações mais frequentes eram is, a e um. O chamado gênero complexo, que agrupa substantivos de gêneros diferentes, era indicado em latim pelo neutro.
Quando, por força da evolução fonética, as consoantes finais do latim se perderam, as terminações do masculino e do neutro se fundiram, resultando nas desinências portuguesas o e a, características da maioria das palavras masculinas e femininas, respectivamente. Ou seja, o nosso gênero masculino é também gênero neutro e complexo. Portanto, não há nada de ideológico, muito menos de machista, na concordância nominal do português.
Brasileiras e brasileiros
A revolta contra o papel neutro do gênero masculino na língua portuguesa - que acabaria dando em coisas como todxs e amig@s - teve uma expressão pioneira no modismo do desdobramento de gêneros: "Brasileiras e brasileiros", por exemplo, como não se cansou de repetir o ex-presidente José Sarney em seus discursos.
O modismo tem até nome: linguagem inclusiva. Tem também um principio de aparato legal a protegê-lo, tornando seu usa obrigatório em algumas esferas da administração pública. Basicamente, trata-se de uma bobagem populista - daí seu sucesso com políticos, cultores por excelência desse tipo de coisa.
Há casos em que pode ser adequado, nem que seja por delicadeza, discriminar os dois gêneros de um grupo. Proibido certamente não é. No entanto, acredito que melhor do que encher nossa língua de cacos, redundâncias e pedidos de perdão, como se fôssemos todos(as) advogados(as) gagos(as), seria combater as discriminações reais onde elas de fato causam dano à sociedade.
De preferência em linguagem limpa e clara.